A mulher e o trabalho intelectual
Obras que fazem pensar sobre a desvalorização do trabalho intelectual feminino
Olá!
Chegou mais um dia 23! :)
E hoje eu gostaria de trazer aqui uma questão abordada em uma das minhas últimas leituras, o romance A casa do pai, da autora espanhola Karmele Jaio. Não é uma resenha, apenas um comentário sobre um tema que me chamou a atenção no livro.
A personagem Jasone, que gostava de escrever quando era jovem, se casa com Ismael, também escritor. Porém, após o casamento, ela para de escrever e passa a apenas editar os trabalhos do marido (além de trabalhar numa biblioteca). E, com isso, Ismael passa a vê-la somente como sua esposa, mãe de suas filhas e revisora de seu trabalho. Ele se esquece que ela também gostava de escrever, que também tinha sonhos, assim como ele.
O que me chamou a atenção foi que a autora Karmele Jaio conseguiu criar um personagem extremamente machista e autocentrado, mas que demonstra essas características em gestos e comentários muito sutis, como muitas vezes acontece na vida real. O machismo, assim como outras agressões, não precisa ser escancarado para se impor e machucar o outro. É na sutileza dos pequenos comentários – e mesmo dos silêncios – que Ismael vai minando a confiança da Jasone, fazendo com que ela se sinta invisível. Ele não consegue ver o valor da esposa para além do trabalho que ela faz para ele e, assim, ela vai também perdendo a noção de seu próprio valor.
“A palavra deles, a palavra dos homens, sempre tinha sido para mim a última palavra, ainda que agora me custe reconhecê-lo. (...) eu me vi dizendo a mim mesma que, durante toda a vida, o que eu fazia não estava ruim, porque não aceitava admitir que fazia algo muito bem; me vi passando a vida com medo de que fizessem uma pergunta que eu não soubesse responder; me vi sentindo uma impostora, sempre acreditando que não sabia o suficiente para estar no lugar ou na posição que ocupava; me vi pedindo perdão por me destacar em algo, agradecendo a todo mundo, diminuindo minha importância.”
Esse “não estava ruim” se refere a um episódio vivido por Jasone, no qual ela mostra os seus contos a dois amigos e eles tecem animados elogios, mas quando mostra seus escritos a Ismael, seu namorado na época, ele apenas diz: “Não está ruim” e põe os papéis de lado como se não tivessem importância. Um comentário rápido, mas que marca Jasone para o resto da vida.
Karmele Jaio conseguiu trazer à tona de forma muito inteligente um tema com o qual muitas de nós nos identificamos e que eu espero que faça com que as pessoas reflitam sobre o valor que elas (não) dão ao trabalho intelectual de mulheres.
Afinal, a ficção está aí não só para nos divertir, mas também para nos ajudar a pensar sobre as coisas da vida.
Ainda sobre isso...
No último mês assisti à 3ª temporada da série A Amiga Genial (HBO), baseada na obra de Elena Ferrante. E esse tema, da desvalorização do trabalho da mulher também está lá. Pietro, marido da personagem Elena Greco, não consegue enxergar valor no trabalho da esposa, que é escritora. Ele é professor e, quando está em casa, se tranca no escritório para trabalhar enquanto ela cuida da casa e das filhas – e não gosta de ser incomodado, é claro. Elena precisa encontrar tempo para escrever nas brechas do trabalho doméstico. E quando deixa seu trabalho na mesa do marido para que seja lido, ele ignora e sempre dá a desculpa de que trabalha muito e não tem tempo para ler o trabalho da esposa.
P.S.: Não, eu não li a tetralogia napolitana da Elena Ferrante... Mas agora que a 3ª temporada da série terminou e só o Universo sabe quando virá a 4ª, fiquei com vontade de ler o último livro...
E como é impossível (pelo menos para mim) refletir sobre o papel da mulher na sociedade sem pensar em Simone de Beauvoir, deixo aqui também o link para a resenha que escrevi esse mês para o Diário do Rio sobre a biografia Simone de Beauvoir: uma vida, escrita por Kate Kirkpatrick.
Mudando de assunto...
Aproveitei o feriado de Tiradentes para assistir ao filme Medida Provisória, dirigido por Lázaro Ramos. É um filme emocionante e muito impactante: num Brasil do futuro, o governo cria uma medida provisória para reparar os anos de escravidão: todos os cidadãos negros (ou de melanina acentuada, como são chamados nesse futuro distópico) devem “retornar” ao continente africano.
É uma distopia, mas não me surpreenderia se realmente acontecesse nesse (des)governo atual repleto de absurdos…
O filme é uma adaptação de "Namíbia, Não!", peça de Aldri Anunciação que Lázaro Ramos dirigiu para o teatro em 2011.
Todo mundo deveria assistir.
Por hoje é só. Se você encontrou este texto por aí e gostou, mas ainda não está inscrito na newsletter, é só se cadastrar para receber os próximos:
E se quiser me acompanhar no Instagram:
Até o próximo dia 23!
Márcia S.