Caminhos sinuosos e mentes inquietas
Uma trilha, uma viagem, Van Gogh e a arte como salvação e/ou cura
Pássaros negros contrastam com um céu muito azul, sem nuvens. Uma montanha surge ao fundo. A mata, um pouco amarelada, queimada pelo insano calor carioca. Há uma trilha, na qual duas pessoas caminham. A pessoa que está atrás, uma mulher, usa calça legging, uma blusa de cor clara, tênis, boné e carrega uma mochila nas costas. Uma terceira pessoa, usando um boné azul, está parada ao lado da trilha, olhando para baixo.
Não era a primeira vez que eu andava por aquela trilha. Em 2000, quando ainda cursava faculdade de Comunicação, um editor foi até a universidade selecionar estagiários para a edição especial de uma revista sobre a Barra da Tijuca e adjacências. Depois de driblar algumas dificuldades (assunto para outro dia), consegui ser selecionada para ser a fotógrafa da publicação. Minha missão era ir aos locais que apareceriam nas matérias e fotografá-los. E uma das matérias era sobre algumas praias que só podem ser acessadas por trilhas.
Eu nunca havia feito uma trilha, então não sabia o que levar, nem como me vestir. As pessoas que iriam comigo – a estagiária que escreveria a matéria, sua irmã e o meu namorado – sabiam tanto quanto eu sobre o assunto trilhas: nada. Alguém – o editor da revista, talvez – disse que havia entrado em contato com o guia e as informações que chegaram até nós foram: 1 - a trilha não era das mais difíceis; 2 - deveríamos usar calça jeans.
É claro que nenhuma informação conferia. A trilha era, sim, difícil, e calça jeans estava longe de ser o melhor figurino para a ocasião. Eu quis desistir já na primeira subida, mas o dever não deixou, afinal, eu precisava das fotos para a revista. No meio da trilha, eu só não sentei no chão e chorei porque não teria como sair dali a não ser que um helicóptero me resgatasse. O jeito era continuar andando. O calor era insuportável. A água que levamos foi pouca. Enfim, o caos.
No fim, tudo deu certo, as fotos ficaram ótimas, a matéria também. E todo o perrengue parece que foi esquecido, porque em 2009 lá estava eu novamente, na mesma trilha, com meu marido. Foi no dia da foto lá do início. Dessa vez, fomos participar de uma expedição fotográfica, um workshop de fotografia em meio à natureza. Com roupas mais adequadas, a trilha foi difícil, mas nem tanto. Ou é o efeito do tempo que já me faz esquecer novamente.
Um caminho estreito e sinuoso
As cores da fotografia da trilha me fazem lembrar de outro lugar que visitei há alguns anos: a cidade de Auvers-sur-Oise, na França, onde Vincent van Gogh passou os últimos dois meses de sua vida. O vilarejo é todo voltado para a vida e a arte de Van Gogh. Visitamos o quarto onde o artista se hospedou (e onde morreu), diversos lugares que ele reproduziu em suas pinturas e, no pequeno cemitério local, o túmulo de Vincent e de seu irmão Théo. Foi uma das viagens mais comoventes que fiz e aconteceu na época em que eu cursava a pós-graduação em História da Arte, o que tornou tudo ainda mais especial.
Em vários pontos da cidade existem placas mostrando as pinturas que Vincent fez daqueles locais. A igreja, a prefeitura, os campos. Um dos lugares mais emocionantes que conheci foi o local que Van Gogh reproduziu no quadro “Campo de Trigo com Corvos”, de 1890, uma das últimas pinturas feitas pelo artista. Quando fui, a vegetação estava rasteira, mas era possível identificar o estreito e sinuoso caminho que aparece no quadro de Van Gogh. Era difícil acreditar que eu estava ali naquele local que havia visto tantas vezes nas aulas e nos livros de arte.
Na biografia de Van Gogh escrita por Steven Naifeh e Gregory White Smith, o quadro “Campo de trigo com corvos” é descrito como uma das pinturas feitas em meio a uma tristeza profunda provocada por uma discussão com o irmão Theo e a cunhada Jo:
“(…) ele mergulhou diretamente no trigo ondulante, seguindo a trilha irregular de um ceifeiro até uma bifurcação no meio do campo. O vento fustiga o cereal maduro, erguendo redemoinhos de cores e pinceladas – e a ventania é tão forte que assusta um bando de corvos de seu esconderijo. Batem as asas e seguem voo no pânico para fugir ao látego impiedoso da natureza. (...) Em vez de anunciar os consolos da vida campestre, agora, disse ele, estava usando o pincel ‘para expressar a tristeza e a solidão extrema’” (Van Gogh – A vida, p. 982, tradução: Denise Bottmann)
Van Gogh é um artista que sempre me inspirou, por sua persistência em fazer arte mesmo sem conseguir vender seus quadros, mesmo lutando contra um transtorno mental que o atormentava. No livro Van Gogh – A salvação pela pintura, o autor Rodrigo Naves defende a ideia de que a perseverança de Vincent van Gogh no trabalho se devia à formação protestante calvinista do artista – à crença de que a atividade árdua e disciplinada levaria à salvação.
“O destino de sua vida repousa num trabalho sem fim, uma condenação, portanto, que para alguém formado na moral calvinista seria simultaneamente uma esperança de salvação” (p. 12).
Naves diz ainda que Vincent tinha consciência plena do que desejava fazer, ao contrário das teorias que atribuem suas pinceladas expressivas à mente atormentada do artista. E que a prova dessa lucidez está nas cartas que van Gogh escrevia ao irmão Theo, nas quais descrevia suas ideias de forma clara.
A arte como cura
Outra visão pode ser encontrada em um livro que li recentemente, chamado O perigo de estar lúcida, da autora espanhola Rosa Montero. Nas palavras da própria autora, o livro é:
“Sobre a relação entre a criatividade e uma certa extravagância. Sobre se a criação tem algo a ver com a alucinação. Ou se ser artista te torna mais propenso ao desequilíbrio mental, como se tem suspeitado desde o início dos tempos” (p. 12 – tradução: Mariana Sanchez).
Para a autora, a resposta é: sim, existe uma relação direta entre arte–sofrimento–desequilíbrio mental (ou o que popularmente é chamado de “loucura”). Rosa fala muito sobre seus próprios transtornos e como ela os transforma em literatura, mas também cita fontes teóricas e diversos escritores e artistas plásticos que tiveram crises em algum momento da vida. E é claro que um livro sobre esse tema não poderia deixar de citar Van Gogh:
“(...) a loucura é um inimigo à espreita ao longo da vida inteira, um abutre rondando para te devorar. Pior: um abutre impaciente que começa a roer suas entranhas quando você ainda não morreu. ‘Meu cérebro está totalmente transtornado e já não serve para viver, de modo que eu deveria ir para um hospício’, disse Van Gogh” (p. 63).
E o pintor aparece novamente quando Rosa cita o livro El cerebro del artista:
“(...) a neurocientista Mara Dierssen encerra seu livro com uma pergunta inquietante: ‘O que teria acontecido se muitos daqueles gênios tivessem se tratado com nossos métodos terapêuticos atuais? Nunca saberemos se todas as obras fruto do seu estado mental teriam sido realizadas’. Embora também valha se perguntar se, em casos extremos, pode-se chegar a preferir saúde à obra. Será que Van Gogh teria escolhido ser menos genial e não sofrer tanto?” (p. 123)
Em certos trechos das cartas ao irmão, Van Gogh fala de sua quase obsessão pelo trabalho como remédio e cura. Por exemplo, nesta carta de agosto de 1889:
“O trabalho me distrai infinitamente mais que qualquer outra coisa e se por uma vez eu pudesse nele me lançar com toda minha energia, este seria provavelmente o melhor remédio.” (Cartas a Theo, p. 346)
E nesta, de setembro do mesmo ano:
“Meu caro irmão – é sempre em meio ao trabalho que lhe escrevo –, estou trabalhando como um verdadeiro possesso, mais que nunca estou num furor surdo de trabalho. E creio que isto contribuirá para minha cura.” (p. 347)
Pela teoria de Rosa Montero, Van Gogh conseguiu transformar sua angústia em arte, nas sólidas e determinadas pinceladas que deram origem às suas estrelas espirais num céu atormentado.
Um céu de estrelas inquietas
Na biografia de Van Gogh, Naifeh e Smith afirmam que o artista não cometeu suicídio, como sempre fora divulgado. Uma investigação feita pelos autores mostra que o mais provável é que Van Gogh tenha levado um tiro acidental disparado por um adolescente que passava férias na região. Rodrigo Naves também cita essa versão da morte do artista em seu livro:
“Não se tem certeza se foi suicídio ou um tiro acidental disparado por um de dois irmãos, René e Gaston Secrétan, que costumavam passar as férias em Auver-sur-Oise na mansão dos pais. Eles acompanhavam as sessões de pintura ao ar livre de Van Gogh. Um deles usava uma fantasia de caubói, mas no coldre tinha uma arma de verdade. Um disparo acidental poderia ter matado o artista, que por bondade ocultou o crime.” (Van Gogh – A salvação pela pintura, p. 48)
Acho que esse fim faz mais sentido para alguém tão obstinado, ainda que atormentado. Ou talvez seja apenas a minha vontade de crer que o desejo de Vincent era continuar, apesar de tudo, a fazer a arte que ele tanto amava. A seguir o seu caminho, ainda que muitas vezes parecesse por demais estreito e sinuoso, buscando a salvação ou a cura através de suas densas pinceladas, seus campos, girassóis e seu imenso céu de estrelas inquietas.
Mudando de assunto…
Faz muito (muito!) tempo que não apareço por aqui, eu sei. Na última vez que enviei essa newsletter, eu estava prestes a lançar meu livro de crônicas, Inventário de vagas lembranças (Penalux). O lançamento, aliás, foi ótimo, e o livro ficou lindo! :) Inclusive, ainda tenho alguns exemplares comigo para venda. Se você tiver interesse em receber o livro autografado, é só me responder esse e-mail ou entrar em contato pelo Instagram. ;)
Vem aí
E vem livro novo aí! Logo, logo meu romance Dona das Dores, que foi um dos vencedores do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura 2023, será publicado pela editora Urutau, com orelha da jornalista e escritora Rachel Quintiliano, colunista da Revista Raça. :)
Por hoje é só.
Até um dia 23! :)