O peso do 'nunca mais'
“(...) o tempo é uma coisa trágica: ele acontece.”
Noemi Jaffe
No início desse mês li Lili – novela de um luto, da Noemi Jaffe. Neste livro, Noemi conta como foram difíceis os momentos posteriores à morte de sua mãe, Lili. Sobrevivente do Holocausto, Lili, que era viúva e mãe de três filhas, morreu aos 93 anos – e Noemi deixa claro que, ao contrário do que dizem as palavras de consolo, o fato de que ela viveu muito e de que já estava doente havia algum tempo não ameniza em nada a dor da perda. Ninguém está pronto para este momento, por mais que entendamos ser este o caminho natural das coisas.
“Será que vou me tornar para sempre uma pessoa mais triste? Será que já sou uma pessoa triste e agora, sem minha mãe – minha fonte de alegria –, estou mais parecida com o que sou?”
Na edição de março dessa newsletter, eu contei que um dos motivos dela se chamar Página 23 é que minha mãe morreu dia 23 de dezembro – exatamente seis anos atrás. E, por mais que a história de Lili e a da minha mãe sejam completamente diferentes, foi impossível não traçar uma relação entre as duas, pois, para mim, as duas vivências se encontram justamente nessa palavrinha curta, mas cheia de sentimento e significado: mãe.
“E existe ainda uma aceitação existencial, que oscila: aceito, não aceito: ela não existe mais. Minha mãe – o olhar, o sorriso, o beijo e o abraço – não existe mais.”
Quando minha mãe morreu, lembro de andar na rua e pensar: como pode o mundo continuar a funcionar como se nada tivesse acontecido? Como pode aquela pessoa ali andar, sorrir, fazer compras, e minha mãe não estar mais aqui? Qualquer coisa que acontecia era estranha, porque minha mãe não poderia ver. É uma sensação muito esquisita saber que alguém que era tão próximo não existe mais neste mundo.
No artigo Luto e melancolia, Freud escreveu que o luto afeta o nosso interesse pelo mundo externo, “na medida em que este não faz lembrar o morto”.
“Não poder mais dizer ‘mãe’ e ouvir uma resposta (...). Esse nunca mais, como no poema ‘O corvo’, é a grande dor. Esse decreto impositivo do tempo, como a voz de um grande deus, ‘nunca mais’.”
Eu gostava de contar para a minha mãe as coisas que fazia ou que me aconteciam. Ela gostava de ouvir (eu acho). Geralmente ria e dizia: “Você só inventa moda!”.
“Mãe, fiz outra tatuagem.”
“Outra?? Hum... Você só inventa moda!”
Mas depois via a tatuagem e dizia que estava bonita.
Em 2009, após o meu último dia de aula na graduação em Design Gráfico, nem esperei chegar em casa, liguei logo para ela e contei que havia terminado a faculdade. Agora, mesmo depois de alguns anos, ela ainda é a primeira pessoa em quem eu penso quando alguma coisa acontece. É nessas horas que sinto o peso do “nunca mais”.
Noemi escreve sobre a dificuldade de se desfazer dos pertences e da casa da mãe, de “ver uma casa morrendo junto com sua moradora”:
“(...) fui mais algumas vezes à casa dela – que logo não será mais dela, e a antecipação disso me dói, porque significa que não vai mais existir um lugar para eu me lembrar dela, que toda a lembrança vai estar só dentro de mim, de nós e nos poucos objetos que levaremos dela.”
E sobre como é difícil pensar num futuro no qual aquela pessoa tão importante (e que parecia ser eterna) não estará presente:
“E para onde vou agora? Para qual futuro vou sem ela, que é uma parte de mim, ela, de quem sou uma parte?”
Apesar de não poder mais conversar com minha mãe, sei que ela está presente em muito do que eu faço:
Quando visto uma blusa verde e me lembro que essa era a cor preferida dela;
Quando coloco uma folha de louro no feijão sem saber o porquê, só porque ela colocava;
Quando tenho um compromisso e lembro dela me dizendo pra sair sempre de brinco e batom.
Porque ela é parte de mim e eu sou parte dela, como bem disse a Noemi sobre sua Lili.
E é por saber que ela está sempre comigo, que tenho certeza de que quando fizer minha 15ª tatuagem, dona Maria do Socorro estará me olhando um tantinho contrariada e dizendo: Você só inventa moda!
Por hoje é só. Boas festas para quem gosta, bom descanso para quem pode. :)
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Até o próximo dia 23! (se tudo der certo…rs)
Márcia S.