Um texto sobre timidez, Filosofia e o dia em que tentei responder uma pergunta e quase desmaiei. Pega um café (ou chá) e vem comigo :)
A timidez tem sido minha companheira durante esses quarenta e cinco anos de vida. Sempre fui aquela criança quietinha, que falava baixo e sentava no canto evitando incomodar, torcendo para não ser notada. Se pudesse, na infância, escolher um superpoder, certamente seria o da invisibilidade (talvez ainda seja em alguns momentos). A situação era tão crítica que no ano passado encontrei uma pessoa que me conheceu quando eu era criança, e ela disse que ficou surpresa quando soube que eu iria casar (mais de vinte anos atrás), porque sempre fui muito quietinha. Pois é.
Aos dezoito anos, quando entrei para a faculdade de Comunicação, estava realizando um sonho que trazia comigo desde nova: cursar Jornalismo para ser escritora (na época eu não dizia “ser escritora”, minha vontade era “ser colunista de uma revista”). Acontece que, já no segundo período, apareceu um obstáculo: precisei apresentar um seminário. E aqui, antes de continuar, preciso que você me acompanhe num pequeno desvio; vamos voltar mais um pouco no tempo, para o ano de 1991, quando tinha doze anos e cursava a 6ª série:
Eu estudava no Colégio Pedro II, instituição tradicional do Rio, e era uma pré-adolescente com aquelas características que descrevi lá no início – quietinha, que sentava no canto e falava baixo. Certo dia, uma professora distribuiu um texto e foi chamando os alunos um por um para ler um trecho. Aquele momento de pânico para toda pessoa tímida. Na minha vez, comecei a ler e a professora pediu que falasse mais alto. Tentei, não consegui. Ela, então, ordenou que eu fosse até o fundo da sala (que era enorme) e lesse o texto de forma que ela conseguisse ouvir lá da frente. Eu fui. Minhas mãos suavam, meu coração estava acelerado. Li o mais alto que consegui (o que não era muito), com as pernas tremendo, segurando as lágrimas e ouvindo os colegas cochicharem sobre a minha tremedeira. Terminei de ler, a professora me mandou voltar ao meu lugar e fez algum comentário do qual não me lembro as palavras exatas, mas era uma reclamação por ter lido tão baixo. Sentei e deixei as lágrimas caírem. Chorei em silêncio, para não levar outra bronca.
Agora estamos de volta a 1998, quando, já na faculdade, precisei apresentar aquele seminário na aula de português. A professora chamou meu nome e eu andei lentamente até a frente da sala – mãos suando, coração acelerado. Falei o mais alto que consegui (o que, já sabemos, não era muito). Foram longos minutos de agonia. Quando terminei a apresentação, avisei à professora que iria beber água. Saí da sala ainda com o coração aos pulos e a boca seca, mas não parei no bebedouro. Desci as escadas, fui direto à secretaria da faculdade e disse ao primeiro funcionário que encontrei: Quero trancar minha matrícula.
(Depois voltei para a faculdade e muita coisa aconteceu, mas isso é outra história…)
Por isso tudo, é ainda difícil entender o que me fez aceitar, dois anos atrás, a tarefa de ser a oradora da turma, quando me formei em Filosofia. Tudo bem que eu já tinha quarenta e dois anos e não era mais tão tímida quanto na juventude (uma mudança que veio com a maternidade, já que às vezes é preciso, mesmo sofrendo de vergonha, conversar com as mães dos coleguinhas dos filhos, para não passar por antipática). Não era ~tão~ tímida, mas ainda era. Ainda sou. Então por quê? Por que aceitar a tarefa de subir ao palco em um auditório imenso e fazer um discurso para sei lá quantas pessoas? Aqui eu só posso chutar uma resposta: talvez tenha me sentido atraída pela tarefa de escrever o discurso – e proferi-lo era uma consequência necessária. Ué, você deve estar se perguntando, mas não poderia ter escrito para outra pessoa ler? E eu respondo: não sei, nunca perguntei. (Fiquei aqui pensando: quantas respostas nós, os tímidos, deixamos de ter, simplesmente porque não conseguimos perguntar?)
Fato é que, quando meus colegas de turma perguntaram se eu aceitaria ser a oradora, só consegui balançar a cabeça afirmativamente, sem muita convicção e sem pensar direito no que estava fazendo.
Após este aceite hesitante, veio a parte boa: escrever o discurso. Pensei no que eu poderia dizer que representasse todos nós e vi que seria uma tarefa complicada, já que minha turma se dividia em três tipos de alunos bem distintos: os seminaristas, que estudavam Filosofia porque fazia parte da formação para o sacerdócio; alguns senhores idosos, que, após a aposentadoria, resolveram voltar para a sala de aula; e eu, que nem era religiosa nem aposentada, apenas estava ali no meio da vida (espero) realizando o desejo antigo de estudar Filosofia.
Nesse processo, me lembrei de que, logo que comecei a faculdade, alguns amigos e amigas me perguntaram: mas por que Filosofia? E lá no início eu não sabia direito como responder. Só sabia que era um desejo que tinha desde jovem, que sempre gostei de ler textos filosóficos, que sabia que iria me ajudar na escrita. Então pensei: será que agora, terminado o curso, eu teria uma resposta melhor para essa pergunta?
Resolvi tentar.
Por que estudar Filosofia?
Desde que eu e meus colegas iniciamos nossa jornada na graduação, ouvimos algumas vezes a pergunta: por que Filosofia? E confesso que nem sempre foi fácil responder adequadamente esta questão. Dizer apenas “porque eu gosto” ou “porque eu preciso” parecia muito pouco perto de tudo o que nós sabemos que a Filosofia proporciona. Portanto, hoje, dia que marca o encerramento deste ciclo, tentarei, em nome da turma, responder de forma mais satisfatória a pergunta que nos acompanhou durante os últimos anos: por que estudar Filosofia?
No diálogo Teeteto, de Platão, Sócrates afirma: “espantar-se. A filosofia não tem outra origem.” A Filosofia nasce do espanto, da admiração diante de algo que desconhecemos. No século VI a. C., o homem passou a decifrar os enigmas do mundo por meio de seu intelecto, afastando-se do discurso mítico sobre a natureza das coisas. O enigma provoca uma investigação: o que é a justiça? A liberdade? A verdade? O que é o ser?
O homem é o único ser que tem consciência da sua finitude e se interroga sobre o sentido da vida e da morte. Para viver bem, precisamos vencer o medo da morte. No nosso curso aprendemos que os filósofos estoicos e epicuristas realizavam exercícios espirituais que tinham por objetivo manter sempre presente a ideia da finitude, para que se pudesse, assim, aproveitar e apreciar a vida. Além disso, Platão afirma, em outro de seus diálogos, intitulado Fédon, que o filósofo é aquele que se prepara para a morte, quando a alma, livre da prisão do corpo, encontra, enfim, a Verdade. Este é o tema também de um ensaio escrito no século XVI pelo filósofo francês Michel de Montaigne, no qual podemos ler o seguinte trecho sobre a morte:
“Tiremos-lhe a estranheza, frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, não tenhamos nada de tão presente na cabeça como a morte.”
É, portanto, por meio da razão que a Filosofia nos afasta da angústia de sermos finitos. A angústia, segundo os filósofos antigos, nos tira a felicidade e a liberdade. Não é possível, segundo eles, agir livremente diante do temor do irreversível. Apenas conhecendo o mundo e o ser humano é que se torna possível vencer os medos e viver uma vida boa.
E o que seria uma vida boa? Segundo o filósofo espanhol Ortega Y Gasset, a vida é “um problema que nós precisamos resolver”. Nós, seres humanos, somos lançados no mundo e precisamos lidar com o que nos é dado: as pessoas, circunstâncias e situações que nos cercam. Diante de uma série de possibilidades, uma vida boa dependeria das escolhas que fazemos durante a nossa existência. Ainda segundo Ortega, é nestas decisões prévias, que antecedem o agir em si, que está a vida. Viver, para ele, é constantemente decidir o que vamos ser.
Isto quer dizer que, ao contrário do que é o pensamento comum, a Filosofia está longe de ser apenas uma teoria. Ela se apresenta na prática, no nosso dia a dia. A Filosofia trata, sim, de questões existenciais, como o fato de sermos finitos e o sentido da vida, mas também de questões morais, isto é, como agimos em relação aos outros. A parte teórica da filosofia parte das ciências naturais, como a Física e a Matemática, para conhecer este mundo no qual nós existimos, e vai além, questionando-se também sobre a natureza desse conhecimento: quais os meios de que dispomos para conhecer? E quais os limites do nosso conhecimento? A parte prática da Filosofia, aquela que diz respeito a nossa convivência com os outros seres humanos, interroga-se sobre as regras que devem ser adotadas no cotidiano, já que a nossa existência é sempre relacional.
O bem viver deriva do conhecimento do mundo aliado à ética. É preciso seguir na busca da sabedoria para dar sentido às dimensões teórica e prática da Filosofia. O ser humano deve cuidar de sua alma praticando o autoconhecimento e evitando os excessos de qualquer natureza para que possa, assim, desenvolver-se eticamente. Cuidando de si, ou seja, de sua alma, o homem conseguirá conhecer a si mesmo, tendo, assim, noção daquilo que ignora. E poderá, então, sair em busca do conhecimento.
E o caminho é longo. Afinal, como já foi citado, segundo Platão, a Verdade, ou seja, a sabedoria plena não pode ser alcançada por nós, meros mortais – pelo menos não aqui nesta vida. Por isso a Filosofia é o amor à sabedoria, que é o máximo que um ser humano pode alcançar, e não a sabedoria em si.
Conhecer a si mesmo requer exercício e repetição. Segundo o filósofo francês Pierre Hadot, um dos exercícios espirituais praticados na antiguidade era o “olhar do alto”, que significava imaginar uma elevação que permitisse observar o mundo a partir de uma visão superior. Com o “olhar do alto”, os filósofos antigos experimentavam uma sensação de paz, uma vez que viam com distanciamento as coisas mundanas, percebendo o quanto elas eram pouco importantes.
O autoconhecimento é apenas um dos desafios da filosofia. Nos dias atuais, quando a urgência toma o lugar da contemplação, é também desafiador dedicar tempo ao questionamento daquilo que já chega até nós pré-estabelecido. É preciso pensar sobre os conceitos, assim como refletir sobre o sentido que damos a nossa vida. O fascinante da Filosofia é não possuir uma resposta única, mas visões múltiplas que são como lanternas iluminando o caminho pelo qual seguiremos com nosso próprio pensamento. Quando realizamos o que os gregos chamavam de epoché, ou suspensão do juízo, desenvolvemos espírito crítico, reflexão e autonomia. A Filosofia nos resgata da pequenez do senso comum.
Caminho agora para o final voltando ao início: é fundamental espantar-se. Platão afirmou que este é o sentimento próprio do filósofo, e sabemos que também é a natureza da criança. Nietzsche nos falou deste espírito, da inocência e espontaneidade que são necessárias para a criação de novos valores e conceitos.
O filosofar pode acontecer a qualquer momento, a partir da admiração diante do que nos estimula e nos impele ao conhecimento. Em um mundo cada vez mais adoecido e em crise como temos visto, a Filosofia se apresenta como uma esperança de encontrar sentido para a nossa existência.
Termino, então, dizendo que nós, que hoje nos formamos, saímos do curso de Filosofia conscientes de que devemos seguir sempre no caminho da sabedoria, buscando viver uma vida ética e justa, sem nunca deixar de lado o espanto e a admiração diante do mundo, e mantendo vivo em nós o espírito curioso das crianças que fomos um dia.
Consegui, com muito custo, controlar a voz e não gaguejei enquanto lia o discurso, mas foram dez minutos de agonia, tremedeira e sensação de desmaio iminente. Terminado o sofrimento, relaxei. Quando ia descer do palco, as três folhas com o texto caíram no chão, mas eu já estava tão satisfeita por ter sobrevivido, que nem senti vergonha por este contratempo. O pior já havia passado. Catei os papéis e voltei ao meu lugar aliviada.
Não sei se consegui responder a pergunta, mas talvez esta seja mesmo uma questão sem resposta. E não é assim mesmo o amor à sabedoria? Mais perguntas que respostas? O que eu mais gosto na Filosofia é justamente que o mais importante é sempre a reflexão.
E talvez esta seja, afinal, a tal da resposta que eu buscava desde o início.
Talvez.
Mais umas coisinhas:
Esse mês escrevi para o Diário do Rio sobre o livro Cidadã de Segunda Classe, da escritora nigeriana Buchi Emecheta.
A pré-venda de Dona das Dores, meu primeiro romance, terminou e o livro já está em produção. Logo, logo ele estará à venda pelo site da editora Urutau. Neste post, eu falei um pouco sobre como surgiu a ideia do romance. :)
Meu livro de crônicas Inventário de vagas lembranças (Penalux, 2023) está à venda pelo site da editora e pela Amazon. Se você preferir comprar diretamente comigo (autografado, com postal e marcador), é só me responder esse e-mail ou enviar uma mensagem pelo Instagram. ;)
Por hoje é só. Obrigada por ler a Página 23! :)
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Márcia S.
Maravilhoso o seu texto
Não imaginava que era tão intensa a sua timidez...me lembro que era boa aluna! Sou tímida, embora não pareça, mas a terapia sempre me ajudou a superar, e como designer, apresentar meus projetos foi um desafio que me ajudou a ser professora.
Seus textos são extremamente bem articulados e trazem sempre reflexão.
Obrigada!
Sei bem dessas sensações e as fugas que nós tímidos buscamos. O processo de me tornar professora tem sido a busca das maiores superações da minha vida exatamente por ter de me colocar no ‘holofote’. E a cada aula, cada momento, me orgulho do passinho dado de sair dos esconderijos da timidez. Belo discurso!