Alguns anos atrás, quando trabalhava como fotógrafa, recebi um e-mail no qual uma mulher me perguntava: 1) o preço de um ensaio fotográfico; 2) se eu fazia montagens com as fotos, como recortar o fundo e colocar outro. Eu respondi enviando o orçamento do ensaio e dizendo que ~infelizmente~ não fazia montagens. Não satisfeita, ela me enviou outro e-mail perguntando: tem certeza? Sim, eu tinha. E ainda indiquei um lugar que provavelmente faria o que ela precisava. Mas ela não se conformou e dessa vez me telefonou, dizendo que queria muuuito que fosse eu a fotógrafa do seu ensaio, porque havia visto meu site e adorado o meu trabalho. E fez mais uma pergunta: você consegue, então, desfocar to-tal-men-te o fundo das minhas fotos? Ok, isso eu conseguiria fazer, mas achei um pedido estranho, já que ela queria que o ensaio fosse feito no Jardim Botânico – e, geralmente, as pessoas escolhem este lugar pelo cenário.
Deixei pra lá, cada um com sua mania.
Marcamos o ensaio. A cliente – vou chamá-la de... sei lá, Beth – era muito simpática e logo me mostrou que havia levado blusas, bolsas e óculos variados, para alternar durante as fotos. Iniciamos o trabalho. Usei a técnica fotográfica para desfocar to-tal-men-te o fundo, como ela queria. Mostrei a Beth as primeiras imagens, para ver se estavam de acordo com o imaginado e ela amou, ainda bem. Continuamos. Depois de levar duas broncas do segurança porque ela não podia (claro) trocar de blusa ali no meio do Jardim Botânico (Mesmo escondida atrás da árvore, moço? - Beth perguntou. Mesmo assim, senhora. Não é permitido. – o segurança respondeu, sério, mas acho que querendo rir), conseguimos terminar o ensaio. Alguns dias depois enviei a Beth as fotos editadas e ela pareceu muito satisfeita.
A vida seguiu e me esqueci de Beth. Só fui me lembrar dela alguns meses depois, ao fazer um backup do HD onde as fotos estavam salvas. Como minha curiosidade às vezes é maior do que a minha vontade de estar em paz, resolvi procurar Beth no Facebook para ver se ela havia postado alguma das fotos. Não foi fácil, porque ela tinha nome e sobrenome meio comuns, porém, com perseverança, encontrei o perfil. Logo vi uma das fotos em preto e branco que eu havia feito: Beth estava de óculos escuros e carregando uma de suas bolsas. Era uma foto espontânea na qual ela olhava para o lado direito e sorria. Eu também sorri e pensei: olha, ela gostou mesmo! Então fui ler a legenda – e quase caí da cadeira. Dizia mais ou menos assim: Em Paraty aguardando os hoteleiros para a reunião (não me lembro se era mesmo Paraty, mas tenho certeza de que não era o Jardim Botânico).
Só então entendi por que ela queria fotomontagens. E porque, na falta delas, o fundo deveria estar to-tal-men-te desfocado. Descobri que Beth havia acabado de abrir uma agência de viagens e, sem portfólio para mostrar aos potenciais clientes, resolveu ser, digamos, criativa.
Tudo é aparência
E por que me lembrei de Beth agora, tantos anos depois? Foi durante um almoço, alguns meses atrás, que essa história me voltou à lembrança. Na mesa ao lado, um homem conversava com outro sobre a obra no imóvel que seria, dali a algum tempo, a sede da sua empresa. Curioso, o outro quis saber se o home office, que o amigo sempre havia adotado, não estava mais funcionando. E a resposta que ouviu foi: Preciso que a empresa pareça maior para atrair investidores. Pra isso preciso de uma sede. Se você parece grande, as pessoas acreditam que você é grande. Tudo é aparência.
Bem, acho que ficou claro por que me lembrei da Beth.
Tanto o homem da mesa ao lado quanto a Beth utilizaram a mesma estratégia: apostar na aparência. Se minha empresa tem uma sede, a mensagem que eu transmito é de que ela é bem-sucedida. Se eu participo de reuniões com hoteleiros em Paraty/Angra/Búzios, minha agência de viagens vai muito bem, obrigada.
Principalmente com a importância que se dá hoje às redes sociais, é como se estivéssemos todos vivendo numa caverna de Platão, onde vemos apenas sombras (aparências), mas acreditamos que ali está a realidade. Acreditamos em imagens, legendas, emojis e hahahas e não estamos muito interessados no que acontece por trás daquele discurso, porque é difícil aguentar tanta realidade.
Lá na caverna alegórica de Platão, o prisioneiro que conseguiu se soltar, ver a luz e voltar para contar aos outros que aquelas sombras não eram a realidade, foi tomado como louco.
(Aqui me lembro também dos sofistas, professores de retórica na Grécia Antiga, que acreditavam que a linguagem deveria ser usada para persuadir, não necessariamente para transmitir a verdade. Em tempos de eleições... Sei lá... Acho importante lembrar dos sofistas.)
Aparentemente, deu certo
Não sei se a sede da empresa do moço já ficou pronta. Mas, caso alguém tenha ficado curioso, para a Beth, a estratégia deu certo. (Sim, eu fui fuçar o perfil dela de novo)
Hoje ela tem muitas fotos com clientes em diversos lugares do mundo. Sem montagem e sem fundo desfocado. Parece que a agência é um sucesso.
Parece.
Mudando de assunto
Esse mês escrevi para o Diário do Rio sobre o livro Cartas para minha avó, da filósofa Djamila Ribeiro.
Caso ainda não tenha visto: um post sobre um de meus livros preferidos.
Trecho de livro
“É curioso como o ato de escrever nos induz à confissão.
Não que ele também não nos induza a mentir sem parar.”
Sigrid Nunez, no livro O Amigo
*Os links que levam ao site da Amazon são comissionados.
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Márcia S.